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Agronegócio e pequeno produtor são aliados, não competidores, na luta contra escassez de alimentos

27 de junho de 2022

Adalberto Luis Val e Claudia Buzzette Calais 

Qual órgão é mais importante, o coração ou os pulmões? A pergunta parece absurda, já que a única resposta plausível é “ambos”. Cada parte cumpre uma função e a interação entre todas essas é o que sustenta a vida. Não há uma escala de prioridade entre órgãos vitais, mas sim complementariedade.

Se é fácil compreender essa ideia, então talvez devêssemos pensar os grandes problemas ambientais deste século da mesma maneira. O último Fórum Econômico Mundial discutiu exaustivamente o tema da segurança alimentar. O assunto ganhou centralidade por conta do conflito na Ucrânia, que desestabilizou as cadeias globais de produção de alimentos.

A guerra, porém, é um elemento conjuntural. Ainda que ela dure mais do que o previsto, sabe-se que o mercado encontrará estratégias para retomar algum equilíbrio. No médio prazo, o que ameaça mais gravemente a segurança alimentar é aquilo que pesquisadores como Ilona Szabó têm chamado de “tripla crise planetária”: mudança climática, perda da biodiversidade e aumento da poluição. Se não conseguirmos frear esses problemas sistêmicos, comprometeremos seriamente a capacidade das próximas gerações de garantir comida suficiente para sua sobrevivência.

Frente a esse desafio, é comum ouvir que devemos privilegiar a agricultura familiar e os pequenos produtores em detrimento do agronegócio. A ideia parece convincente, mas trata-se de um falso dilema. Esses dois modelos de produção agrícola são complementares e igualmente fundamentais para a segurança alimentar do planeta.

A agricultura de pequeno porte é responsável pela maior fatia da comida que chega à nossa mesa. A ONU calcula que 80% de todo o alimento produzido no mundo vem de propriedades familiares. No Brasil, o último Censo Agrícola do IBGE estimou que 90% dos municípios com até 20 mil habitantes têm sua economia baseada nesse tipo de lavoura. 

O agronegócio, por outro lado, lida com grãos globais, como soja e milho. Já a pequena agricultura produz com mais variedade e de acordo com as preferências da população local. Como os hábitos alimentares de um povo são parte fundamental de sua identidade e de sua herança histórica, a valorização da agricultura de pequeno porte protege também a diversidade cultural.

Mas isso não significa que o agronegócio tenha papel irrisório na manutenção da segurança alimentar. Embora, voltado principalmente para o mercado global de commodities, elas servirão de ração para a produção de proteína animal ou serão transformadas em combustível, garantindo a logística de distribuição dos alimentos. Portanto, a relação entre a agroindústria e a pequena lavoura não é de oposição, mas de complementariedade e ambas podem operar de maneira sustentável.

Se quisermos afastar o risco da falta de alimentos, precisamos de políticas que contemplem esses dois tipos de produtores. Por um lado, o agronegócio pode estimular, na sua cadeia, normas de proteção ambiental, contribuindo para mitigar a “tripla crise planetária”, bem como o respeito ao pequeno produtor, que deve ter assegurado seu espaço no mercado de alimentos. As traders de commodities têm papel fundamental nesse processo, auxiliando os produtores rurais a se adequarem às exigências internacionais de sustentabilidade. São elas que lidam mais diretamente com a pressão dos consumidores, cada vez mais conscientes, e com o risco de sanções internacionais.

De forma complementar, é preciso investir mais no pequeno produtor rural, permitindo que ele se aproprie da tecnologia e do conhecimento que darão solidez à sua produção. Com o avanço da crise climática global, o risco da escassez de alimentos já se tornou uma ameaça tangível, que exige uma resposta global. Um bom começo seria abandonar a oposição “agronegócio versus pequeno produtor”, compreendendo que é preciso cobrar responsabilidades e melhorar nossa relação com o meio ambiente, mas que a grande e a pequena lavoura têm papeis complementares na garantia da segurança alimentar. 

Adalberto Luis Val é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), membro titular da Academia Brasileira de Ciências 

Claudia Buzzette Calais é Diretora-executiva da Fundação Bunge